João Pedro Gião Toscano Rico
(1938-2006)

 
 

A notícia chegou de forma brutal, porque inesperada para mim. Camarada de curso entrado na Escola Naval em 1961, para a frequência do 4.º CEORN, João Pedro revelou-se cedo como um inadaptado das regras impostas aos cadetes.

Cumpridor mas contrariado, alcançou sempre notas positivas e, mesmo nas provas de Educação Física os níveis alcançados foram sempre acima da média, mesmo saltando à vista que não era grande predestinado para as actividades ligadas ao desporto.

Sem queixas nem lamentos, reconhecia-se nele o esforço de executar algumas das tarefas obrigatórias, porque nunca deu parte de fraco e a si próprio impunha a tenacidade de ser igual, ou melhor, entre os melhores.

No  entanto,  a  sua  rebeldia  trouxe-lhe contrariedades. Na viagem de instrução final de curso, sabedor que aos cadetes era imposta a obrigação de permanece-

rem fardados nas saídas de bordo, tomou a decisão provocatória de se apresentar vestido à civil no bar do hotel frequentado pelos oficiais da guarnição do navio, valendo-lhe a atitude uma sanção que o relegou para os últimos lugares da classificação do curso e a quase certa e mais rápida mobilização para o Ultramar.

Enganou-se quem o castigou, porque tal facto não o apoquentou. Pertencente à classe de Marinha, a lógica apontava para o destacamento para um navio em comissão africana, ou eventualmente integrado numa Companhia de Fuzileiros Navais. Inesperadamente, ofereceu-se para a frequência do curso de Fuzileiro, terminando a respectiva instrução com a classificação de “Apto” e tornando-se desde então o primeiro oficial na História da Reserva Naval habilitado com o curso de Fuzileiro Especial.

Foi em 1962 mobilizado para Angola, sendo o 4.º oficial do Destacamento N.º 1 de FZE, destacamento comandado pelo 1.º TEN Henrique Metzner, tendo como Imediato o 2º TEN Luís Camós Oliveira Rego e 3º oficial o  2.º tenente José Júlio Neto Abrantes Serra.

No Zaire, em Março de 1963, fui encontrá-lo de camuflado, no comando do Posto avançado de vigilância da Quissanga, o mais a jusante do rio. Tinha com ele uma boa remessa de medicamentos, a maior parte amostras de laboratórios, que cedia ao seu pessoal em receitas de quem se mostrava conhecedor das maleitas caseiras de pouca gravidade. Aos nativos, no seu dizer curioso, curava os males com a intenção de “acabar com a feitiçaria”.

Um dia, desafiado pelo agente da Pide em serviço na vila de Nóqui, decide fazer uma visita a Matadi, cidade congolesa mais próxima da fronteira.

Em vez de regressar no mesmo dia, por ali se quedou em turismo durante dois dias, provocando tremenda dor de cabeça ao acompanhante.

Era assim João Pedro Toscano Rico. Dizia-se admirador do célebre herói da banda desenhada, o capitão Marvel.  Só que os seus dotes não lhe permitiam voar. Certo dia, encontrei-o à deriva, num bote Zebro a caminho da margem congolesa, com o motor de bordo inoperativo e em risco de ser caçado por nativos que na margem o aguardavam após uma cena de provocação.

Não foi ainda dessa vez que foi apanhado. Nem em várias outras ocasiões, porque repetiu a provocação de pisar terra na margem direita, esperando que os negros do Congo, brandindo catanas, o tentassem apanhar. Sem sucesso, para seu bem.

Valente e corajoso, não era apenas a inconsciência que o levava a tais procedimentos. Algum desejo de notoriedade, eventualmente, levavam-no a atitudes perigosas de que se foi livrando, por vezes no limite do razoável.

Amigo do seu amigo, confiante nos outros, tinha sentimentos nobres e ideais onde a coerência ocupava lugar de destaque.

Em 28 de Setembro de 1975, no célebre Verão Quente da malfadada época da anarquia reinante, João Pedro regressava do Alentejo onde normalmente habitava, tratando e gerindo as suas terras de lavoura, como Agrónomo de profissão que era.

Passou a Ponte do Tejo esperando que as barragens da populaça o mandassem parar, como era norma naquele dia, na procura revolucionária de reaccionários armados.

Não o detiveram porém, o que muito o espantou, porque se fazia transportar numa viatura de marca, um Mercedes, indicativo à primeira vista que se trataria de “contra revolucionário e perigosíssimo reaccionário”.

 

 

Decide então inverter a marcha, voltar à margem Sul e repetir o trajecto em direcção a Lisboa. Dessa vez foi efectivamente mandado parar. Não acatou a ordem e face à atitude, um qualquer grupo energúmeno enviou na sua direcção uma rajada de metralhadora que o apanhou em cheio, deixando-o às portas da morte.

De 1975 até 2006 viveu com essa recordação, porque o mal físico não o impediu de fazer a sua vida habitual, agora com mais calma.

Dada a natureza dos tiros que o atingiram, sempre se considerou convicto de que seriam forças militares as que o trataram daquela forma. Não mais concedeu qualquer crédito à Instituição Militar.

Fez, no entanto, uma excepção. Quando lhe divulguei o projecto do Museu da Reserva Naval  e lhe mostrei a importância histórica da farda camuflada do 1.º Fuzileiro Especial RN nele figurar, convidou-me a ir a sua casa e retirando de um armário uma caixa, religiosamente guardada  por sua Mãe, entretanto falecida, entregou-ma com a emoção de quem se desfaz de um bem precioso mas com a certeza de que a mesma seria estimada como até ali.

E é estimada e ficará exposta no Museu da Reserva Naval ou voltará para a posse dos seus filhos. Promessa que lhe fiz e que cumprirei.

João Pedro Toscano Rico, meu camarada de curso e companheiro de comissão em África, um dos Bravos do Zaire como entre nós, os que por ali passaram, orgulhosamente gostamos de referir, é um dos eleitos da minha Memória, enchendo-me  de tristeza o facto de não mais o ter no nosso convívio.

 

José Pires de Lima
4º CEORN

 

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